sábado, 2 de julho de 2011

ROSA E OS SERTÕES

A morte de Aracy Guimarães Rosa faz-me retornar aos sertões mineiros, transfigurados pela narrativa do grande escritor. Quando avançava a construção de Brasília, e isso coincidia com o surpreendente êxito de seu livro mais conhecido, o engenheiro e político Israel Pinheiro, homem prático, disse que a nova capital acabaria com o sertão de Guimarães Rosa. Ele fundava o seu juízo na realidade geográfica: as mais fortes passagens do grande romance se localizam na margem esquerda do São Francisco e avançam por Goiás, subindo os afluentes ocidentais do grande rio.

O progresso, previu Israel, transformaria os costumes e a economia da região. É certo que muita coisa mudou. A civilização do couro, como atiladamente Affonso Arinos a localizara ali, foi substituída pelo agronegócio, muito mais rendoso do que a pecuária extensiva. A velha vida rural, centrada nos pequenos povoados e fazendas, se reduz, cada dia mais, às propriedades pequenas e médias, de exploração familiar, ou quase familiar, enquanto se estendem as grandes plantações de soja e milho, fertilizadas e molhadas pela irrigação artificial. Não há mais carros de bois, a não ser como adorno diante das sedes das propriedades rurais. Os bois de lida, que puxavam arados e outros implementos, desapareceram. Os cavalos ainda são úteis, mas apenas dentro das propriedades, ou como animais de estima, não mais para as viagens, ainda que curtas. O roceiro cedeu seu lugar ao operário, que manobra as pesadas máquinas agrícolas, e, no cuidado dos bois confinados, moem grãos e gramíneas, alimentam os cochos, despacham as reses gordas para os frigoríficos. Não há mais vaqueiros, nem comitivas, como a que ele acompanhou há quase 60 anos.

Guimarães acompanhado do fotógrafo Eugênio Silva, viajou pelo Urucuia, pela primeira vez, em 1952. Não há notícia de que o haja cruzado antes, embora tenha nascido em Cordisburgo, no vale do grande rio. Foi nessa viagem que ele pôde ver de perto os vastos gerais do Oeste e conhecer suas grandes figuras humanas, como Manuelzão, que o impressionaria pelo porte e pelo saber. Mas o verdadeiro grande sertão, que ele descreveria em sua obra literária, Guimarães já o trazia na mente.

O grande escritor tinha o talento de repórter. Médico da Força Pública de Minas, pôde vasculhar os arquivos do 9º Batalhão de Caçadores, sediado em Barbacena, e do 3º, de Diamantina. Nesses arquivos soube da existência de personagens como os Militão e os Guerreiro, famílias adversárias do Médio São Francisco, e dos grupos de jagunços que percorriam a região nos primeiros anos do século 20, sob o comando de chefes políticos que retrataria com os nomes literários de Medeiro Vaz, Joca Ramiro, Zé Bebelo. Médico de roça, em Itaguara, no Vale do Paraopeba, outro afluente do São Francisco, Guimarães pôde penetrar na genuína alma mineira, que ele mostrará nos contos de Sagarana (principalmente em “O Duelo”). A visão quase humana dos animais, como em “O Burrinho Pedrês” e “Conversa de Bois” faz parte da transcendentalidade mineira do Alto São Francisco. A linguagem surpreeendente de “Corpo de Baile” e “Grande Sertão” não é o traço mais profundo da literatura de Rosa. Ainda que ele não tivesse a sua extraordinária cultura literária, sua obra teria sido da mesma forma monumental. Mais do que tudo, Guimarães foi um interessado no homem, que, nos sertões, é obrigado a ter um caráter mais nítido, a viver e a morrer com fé, paixão e coragem.

É uma pena que a viúva de Guimarães tenha sobrevivido ao grande escritor em completo recolhimento. Faltou, em tudo o que se disse sobre o grande escritor, o melhor depoimento, que seria de Aracy, sua discreta companheira por quase trinta anos.

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