segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

OSCAR, NO MUNDO E NO SÉCULO



(JB) - Duas idéias se associam, espontâneas, quando pensamos em Oscar Niemeyer: a da alegria e a da infância. Nem todas as crianças são felizes e, por isso mesmo, o adulto, quando pode, recupera o tempo de menino, mesmo que se veja obrigado a recriá-lo, livrando-o das tristezas e revivendo as horas felizes, ainda que escassas. Oscar foi, acima de tudo, um artista, que sabia desenhar. Ao ver o que veio de sua obra, poderíamos repetir – e com mais razão – o verso de Vicente Aleixandre, sobre Pablo Picasso: o mundo era uma linha na mão do menino.
       A linha, na mão de Oscar, não foi habitar apenas a tela ou a cartolina: saiu de seus dedos para, na doma da arquitetura, levantar igrejas e palácios, universidades e capelas. Muito do mundo saiu de sua mão de gênio.
               Oscar sempre foi o menino que amava contestar o mundo feito pelas normas, ou seja, pelos esquadros. Por isso mesmo, amolgou o ângulo reto, para voltar à verdade da curva. A inspiração, revelada, do corpo feminino para a sua ousadia em concreto, parece ter sido uma travessura de adolescente, e talvez tenha sido como ele costumava dizer.
             Alguns de seus melhores amigos foram também moleques, naquele sentido lúdico do vocábulo. E entre todos os que já se foram, o mais próximo na visão menina da vida, foi Darcy Ribeiro. Foram moleques os dois, pela vida a fora, e muitos daquela geração brilhante – e honrada pelo patriotismo e pela solidariedade.
            E já que lembramos o espanhol Aleixandre, podemos recordar, também, a norte-americana Gertrud Stein, que considerava a alegria a coisa mais séria da vida. Porque eram meninos e porque eram alegres, Darcy e Oscar, Vinícius e Tom Jobim, entre outros de nossos anos dourados, foram homens sérios.
       Tememos a morte, porque a desconhecemos. Oscar ludibriou a morte, até a bela idade a que chegou, por amar intensamente a vida. Ele parecia com ela negociar, sempre aceitando um novo trabalho, na certeza de que lhe seria concedido o tempo de cumprir seu compromisso, de concluir o seu projeto. Em seus últimos dias, revivendo a juventude leve e livre, pediu a Vera, sua mulher, que conseguisse alguns pastéis. Isso me fez lembrar o que ele me disse certa vez:  não conhecia iguaria melhor do que pastéis fritos, quentinhos, engordurados e quase torrados, e ainda mais saborosos se combinados com chope gelado. 
Oscar e Darcy foram companheiros na trilha da utopia, esse caminho sem fim, mas no qual o destino que conta se alcança em cada passo. Um dia Oscar foi visitar Darcy Ribeiro em seu gabinete no Senado. Como o seu companheiro de travessuras não estava, fez, na parede branca, um belíssimo desenho. Era o recado que ali deixava para o amigo. O senador Francisco Dornelles, ao ocupar o mesmo gabinete, fez questão de manter  o  afresco em sua parede.
        Oscar, em seus 105 anos, morreu menino.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

O BRASILEIRO JORGE AMADO

(HD) - O menino, filho do  rico fazendeiro da região do cacau, que foge do colégio, torna-se repórter de polícia aos 14 anos, aprende a viver nos bordéis e nos botequins do porto da Cidade da Bahia, foi um escritor de seu povo. Ser escritor de um povo não é só contar suas estórias, belas ou tristes. É mais do que criar estilos literários, realizar experiências lingüísticas, apelar para metáforas inusitadas. Ser um grande escritor de seu povo, como foi Michael Gold, com Judeus sem Dinheiro; John dos Passos, com Manhattan Transfer; Steinbeck, com Vinhas da Ira; Ferreira de Castro, com A lã e a neve; Érico Veríssimo, com O Tempo e o Vento, e Tolstoi, com Guerra e Paz – entre tantos outros -  é incorporar na alma todos os sentimentos, bons e maus, de seus conterrâneos, no momento da recriação literária. É vivê-los nas próprias vísceras, participar de seus sofrimentos, acreditar em seus deuses e acompanha-los no momento da morte.
        Jorge Amado foi o escritor da Bahia, da Bahia que dera nascimento ao Brasil e à sua literatura com o gênio cáustico de Gregório de Mattos Guerra; da Bahia que consolidou a independência, com a gesta heróica de 2 de Julho; da Bahia do irredentismo da Revolução dos Alfaiates. E, por isso mesmo, um brasileiro.
         É velha a discussão entre a literatura e a política. Toda literatura - como os poemas e peças teatrais gregas - trata das relações entre os seres humanos, todas elas condicionadas pelas tensões do poder. A obra literária é sempre política. É assim que podem ser lidos os textos de Guimarães Rosa, inspirados, como se sabe, pelos relatórios da Polícia Militar de Minas, antiga Força Pública. Ao escrever seu excelente ensaio sobre o Rio São Francisco, Marco Antonio Coelho trata do assunto, ao identificar um dos personagens fortes de Grande Sertão:Veredas,  o enigmático Zé Bebelo, vencido, na ficção, pela ousadia de Riobaldo. Guimarães se baseou na vida real do “coronel” Rotílio Manduca, chefe político e responsável, conforme a lenda, pela morte de mais de duzentos inimigos, no Vale do São Francisco.
         Jorge Amado foi um grande militante político. Ao eleger-se deputado federal pelo Partido Comunista apresentou projetos de lei como o da efetiva liberdade religiosa – ele que era rigorosamente ateu, ainda que acolhido nos terreiros de candomblé. Dele tenho a memória de um forte convívio, no Brasil e no Exterior. Fomos membros da Comissão de Estudos Constitucionais, que elaborou o anteprojeto da Constituição de 1988 e ali sempre coincidimos em nossas posições.
          Ele se orgulhava de que o definissem como “o romancista das prostitutas e dos vagabundos”. Ele sempre foi o romancista do povo pobre, explorado e oprimido de nosso país.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

GABRIEL GARCIA MARQUES. O TRISTE OUTONO DE UM GÊNIO


Entre outras dívidas que tenho para com a memória de Jorge Amado está a de ele me ter apresentado, em 1972, em Bad Godesberg, a Gabriel Garcia Márquez. Era um encontro de escritores latino-americanos, patrocinado pelo governo alemão, que eu cobria para este JB, e pude conhecer, também ali, o genial gualtemateco Miguel Angel Astúrias. Dissera a Jorge de minha admiração por Cién años de soledad, ao manifestar a minha timidez diante do gênio. Jorge sorriu e me confidenciou: “o escritor escreve para ser admirado. Vamos conversar com ele”. Assim, conversamos algum tempo com Garcia Marques. Ele já se encontrava no planalto de sua glória. Era ainda muito jovem, e exibia, aos 44 anos, o bigode um pouco grisalho.

Gabriel foi extremamente amável e me disse que éramos colegas. Colegas no jornalismo, o que o autorizava a ver-me também como escritor. O bom jornalismo é sempre boa literatura, disse. E quem não sabe escrever, não faz literatura, nem jornalismo. Só pode ser considerado jornalista ou escritor aquele que vive do que escreve.

Ele me surpreendeu pelo bom humor. Antes Astúrias me impressionara pela sobriedade. Enfim, entre um e outro, havia quase trinta anos de diferença.

Não o vi em Praga, quando ali encontrei, em dezembro de 1968, Carlos Fuentes e Julio Cortazar. Ele, naquela noite - que foi a do AI-5 no Brasil - era convidado especial de Milan Kundera. Eles, juntamente com Jean Paul Sartre, haviam sido convidados pelos intelectuais tchecos, para assistir à premiére de Les Mouches, a peça do escritor francês.

Leio, agora, em El País, que seu irmão mais moço, Jaime Garcia Márquez, que vive em Cartagena de Índias, conversa com o escritor, pelo telefone, quase todos os dias. A pedido de Gabriel, fala do passado que o irmão está perdendo. O escritor transita em seu labirinto, e o tênue fio de Ariadne é a voz do irmão. Não teremos mais notícias novas do mundo fabuloso que ele criou, tendo como centro a instigante Macondo.

Gabriel está com demência senil, um dos sinônimos da Doença de Alzheimer. Com a memória, ele perdeu também as letras. Não escreverá mais - de acordo com a dolorosa conclusão do irmão. Mas ainda o teremos com vida: é o consolo que nos dá Jaime Garcia Márquez. Enquanto procurar o passado, Gabriel, de um mundo que se esvazia, estará voltando ao mundo que criou.

Em Roma, em 1987, José Saramago, outro que deixou o jornalismo pela literatura, me disse que gostaria de morrer quando estivesse buscando a frase ideal para colocar na boca de um personagem estúpido: “quando não conseguir mais isso, estará na hora de morrer”. Mas Saramago era homem de uma Europa sempre angustiada. Gabriel é homem de nossa América, e, por isso, insiste em recuperar a vida que se esmaece, porque na vida, em nossa geografia humana, sempre habita a alegria da esperança.