sexta-feira, 22 de julho de 2011

MEMÓRIA DE JANGO

Não tive ainda a oportunidade de ler o livro do professor Jorge Ferreira sobre o Presidente João Goulart, mas a simples evocação do grande brasileiro me conduz a algumas lembranças pessoais de um homem solidário com seu povo e que conquistava todos os que o conheciam.

Em 1953, logo depois de nomeado Ministro do Trabalho, Jango visitou Belo Horizonte. Fui encarregado pelo Diário de Minas, onde trabalhava, de acompanhá-lo, em seus contatos oficiais e com os líderes sindicais mineiros. Jango vestia um terno branco, de linho irlandês

S120 (para os que ainda se lembram daquele tempo). Em determinado momento alguém lhe fez um pedido, ele não encontrou caneta nem papel em seus bolsos e apelou para o jovem repórter que se encontrava ao lado. Ofereci o que tinha, uma folha de papel e uma caneta Sheaffers, de tinta azul. Por uma dessas imprevisíveis fatalidades, a caneta começou a soltar a tinta, sujando as mãos do Ministro. Jango, em ato contínuo, limpou suas mãos no próprio paletó, até então imaculadamente limpo. Fiquei constrangido, e ele me disse que não me incomodasse - continuaria usando a caneta – e retirou do bolso um lenço, passando a usá-lo para limpar os dedos, a cada vez que escrevia.

Em 1975, estive em Buenos Aires para redigir um livro sobre a Argentina. Visitei o escritório comercial de Jango, instalado no centro da cidade. Conversamos sobre os dois países e a situação política. O presidente se lembrou do nosso exílio em Montevidéu - quando nos vimos algumas poucas vezes – de Belo Horizonte e de minha caneta esbodegada.

Tu me deves um terno de linho irlandês, lembrou para o meu desconforto, e sorriu. Como eu estivesse em companhia de Wania, minha mulher, cujo sofrimento nos meses que se seguiram ao golpe ele conhecia, bateu-me afetuosamente no ombro, enquanto a olhava, e disse: - Se os militares te fazem a vida impossível, vem com tua família. Na estância haverá um lugar para todos, e não faltará uma ovelha para carnear.

Foi a última vez que o vi. Fiquei preocupado porque ele mantinha sempre à mão comprimidos de trinitrina: sofria de cardiopatia, e o remédio, poderoso, serviria para, em caso de urgência, dilatar os vasos até o socorro médico. No ano seguinte, em dezembro de 1976, quatro meses depois de Juscelino, Jango morreria no exílio. Cinco meses mais tarde, em maio de 1977, seria a vez de Lacerda. Tancredo duvidava daquela coincidência: em menos de um ano, os três morreriam, a seu ver, de forma estranha. Segundo informações posteriores, um agente, a serviço da Operação Condor, teria trocado o vasodilatador por outra droga, o que teria matado JANGO em sua estância argentina.

Jango não escolhera seu destino. Filho de rico estancieiro, ao aproximar-se de Vargas, comoveu-se com a vida austera e discreta do ex-presidente, confinado em sua fazenda do sul. Não era um intelectual, como Lacerda, nem um visionário, como foi Juscelino, com os quais tentou a famosa Frente Ampla contra a ditadura. Aprendera, com Getúlio, a respeitar os trabalhadores e dava real importância às organizações sindicais, como contraponto às sólidas e poderosas instituições patronais.

Em 1954, ao cobrir os fatos que se seguiram à morte de Vargas, vi quando Jango – que morava em um hotel de Copacabana – chegou ao Catete, tirou do bolso um documento e leu em silêncio, o rosto tenso. Provavelmente se tratava de cópia da carta-testamento que Getúlio lhe entregara antes de terminar a reunião ministerial, da noite anterior, com a observação de que se tratava de um assunto a ser resolvido no dia seguinte – como se soube depois. Essa foto ilustrou, se não me falha a memória, a matéria que redigi sobre os fatos, e foi publicada na edição de 26 de agosto do Diário de Minas.

Ele estava desolado, como o filho que perde o pai, o viajante que perde o caminho. Mas, no dia seguinte, logo depois do sepultamento de Getúlio, em São Borja, reuniu-se a Oswaldo Aranha e a Tancredo Neves. Os três avaliaram a situação e concluíram que era necessário colocar nas ruas uma candidatura presidencial, a fim de coibir o golpe antinacional que estava em marcha, sob o governo frouxo e cooptado de Café Filho. Ali se decidiu que a candidatura de Juscelino – um dos favoritos de Vargas – fosse lançada em seguida.

Jango tinha uma visão de Estado que continua válida até hoje. Se ele houvesse conseguido realizar as reformas de base – principalmente a agrária e a bancária – o Brasil teria chegado a seu futuro mais cedo. Os trabalhadores do campo escapariam das brutais condições impostas pelo latifúndio, aumentaria a produção de alimentos e, como ocorreu em outros países, seria ampliado o mercado interno para a indústria nacional. A reforma bancária colocaria ordem no sistema financeiro­ – providência a cada dia mais necessária, aqui e em todas as partes. O golpe de 1964 atrasou o processo de construção nacional, que só foi retomado com Itamar, para em seguida frustrar-se durante oito anos, e ser retomado por Lula, com sua política social que libertou milhões de brasileiros da miséria.

Jango, estancieiro rico, que chegara à política pela solidariedade pessoal para com Vargas, tornou-se, pelos seus atos, corajosos e patrióticos, um homem de seu povo.

sábado, 2 de julho de 2011

O HOMEM DIANTE DA MORTE


Conheci bem José Alencar, e conheci bem Teotônio Vilela. Minhas relações com o alagoano eram marcadas pelo patriotismo radical que ele passou a exercer na luta contra a ditadura, já diagnosticado o câncer que o levaria. Com Alencar, a nossa cumplicidade era a província de Minas. Foi em nome de Minas que pude contribuir para sua eleição ao Senado. Em 1998, asfixiadas as montanhas pela arbitrariedade manhosa do governo federal de então, a vitória de Itamar era vital para a recuperação da autonomia do Estado. Sabíamos, desde o início, que a eleição iria para o segundo turno. Como as eleições para o Senado se resolveriam no primeiro, José Aparecido de Oliveira e eu, sem discutir o assunto com os candidatos, concluímos ser absolutamente necessária a vitória de Alencar. Se perdêssemos a cadeira do Senado para os adversários, a posição do governador Eduardo Azeredo, que disputava a reeleição, estaria fortalecida - e comprometida a restauração política de Minas. Foi assim que Aparecido e eu nos escalamos, para trabalhar pela vitória de Alencar. Dediquei-me a ajudá-lo, na organização de seu discurso de campanha.
Teotônio sabia da gravidade da própria enfermidade e tinha a consciência da morte. Eu trabalhava na Folha de S. Paulo, e Octavio Frias Filho sugeriu-me que o entrevistasse, em 1982. Foi a entrevista mais demorada que fiz em minha vida. Teotônio falou-me, pela primeira vez, na casa de uma de suas filhas, em São Paulo. Quando, no dia seguinte, preparava para redigir o texto, recebi seu telefonema. Queria acrescentar alguma coisa esquecida. E assim ocorreu por quase duas semanas. Ele sempre interrompia o meu trabalho, lembrando-se de uma idéia, de um detalhe. E fazia questão de ir à minha casa, tornando-se, naqueles dias, íntimo da família. As nossas conversas ocupariam um livro de razoável tamanho. Tive, no texto final, que cortar trechos também importantes, para me cingir a duas páginas do jornal. Daí em diante, sempre que ele ia a São Paulo, nós nos encontrávamos, no Hotel Otton Pálace, onde se hospedava, ou em minha casa.
Nos dois homens públicos encontrei o mesmo confronto com a idéia da morte. Teotônio não a temia, embora amasse profundamente a vida. Ele fez da pressa (sabia que o tempo se encurtava) seu ânimo, e saiu pelo Brasil, clamando pela pátria que existia, mas era desdenhada pelas elites, às quais, pelo nascimento, pela carreira e pela fortuna, ele pertencia. Em nossa última conversa, pelo telefone, ele me disse: “o óleo da candeia já está acabando, só resta o molhado da mecha. Estamos indo, Mauro”. Em Teotônio, a busca do poder era responsabilidade legada pelos ancestrais. Vinha com a escritura da fazenda e as máquinas da usina, além, é claro, dos restos dos engenhos mais antigos. De uma família que, consciente de seu papel, endereçara Teotônio à política, e seu irmão, Dom Avelar, que foi Cardeal Primaz do Brasil, ao sacerdócio. José Alencar, nascido na Zona da Mata de Minas, enfrentou o trabalho muito cedo. Autodidata, chegou à vida pública depois de vitoriosa carreira empresarial. Faltava-lhe a realização política e a ela se dedicou já homem maduro. Aproveitou, com inteligência, a ajuda das circunstâncias, ao aceitar o convite de Lula, e dar ao eleitorado da classe média (mais do que aos eleitores das elites, conhecedores das coisas como elas são) o aval para a vitória do operário.
Mas, em ambos, na obstinação pelo aproveitamento das horas que se esvaíam, houve a mesma postura diante da morte: a de recebê-la, como dizia Manuel Bandeira, em seu poema conhecido, “lavrado o campo, a casa limpa, a mesa posta, cada coisa em seu lugar”.

ROSA E OS SERTÕES

A morte de Aracy Guimarães Rosa faz-me retornar aos sertões mineiros, transfigurados pela narrativa do grande escritor. Quando avançava a construção de Brasília, e isso coincidia com o surpreendente êxito de seu livro mais conhecido, o engenheiro e político Israel Pinheiro, homem prático, disse que a nova capital acabaria com o sertão de Guimarães Rosa. Ele fundava o seu juízo na realidade geográfica: as mais fortes passagens do grande romance se localizam na margem esquerda do São Francisco e avançam por Goiás, subindo os afluentes ocidentais do grande rio.

O progresso, previu Israel, transformaria os costumes e a economia da região. É certo que muita coisa mudou. A civilização do couro, como atiladamente Affonso Arinos a localizara ali, foi substituída pelo agronegócio, muito mais rendoso do que a pecuária extensiva. A velha vida rural, centrada nos pequenos povoados e fazendas, se reduz, cada dia mais, às propriedades pequenas e médias, de exploração familiar, ou quase familiar, enquanto se estendem as grandes plantações de soja e milho, fertilizadas e molhadas pela irrigação artificial. Não há mais carros de bois, a não ser como adorno diante das sedes das propriedades rurais. Os bois de lida, que puxavam arados e outros implementos, desapareceram. Os cavalos ainda são úteis, mas apenas dentro das propriedades, ou como animais de estima, não mais para as viagens, ainda que curtas. O roceiro cedeu seu lugar ao operário, que manobra as pesadas máquinas agrícolas, e, no cuidado dos bois confinados, moem grãos e gramíneas, alimentam os cochos, despacham as reses gordas para os frigoríficos. Não há mais vaqueiros, nem comitivas, como a que ele acompanhou há quase 60 anos.

Guimarães acompanhado do fotógrafo Eugênio Silva, viajou pelo Urucuia, pela primeira vez, em 1952. Não há notícia de que o haja cruzado antes, embora tenha nascido em Cordisburgo, no vale do grande rio. Foi nessa viagem que ele pôde ver de perto os vastos gerais do Oeste e conhecer suas grandes figuras humanas, como Manuelzão, que o impressionaria pelo porte e pelo saber. Mas o verdadeiro grande sertão, que ele descreveria em sua obra literária, Guimarães já o trazia na mente.

O grande escritor tinha o talento de repórter. Médico da Força Pública de Minas, pôde vasculhar os arquivos do 9º Batalhão de Caçadores, sediado em Barbacena, e do 3º, de Diamantina. Nesses arquivos soube da existência de personagens como os Militão e os Guerreiro, famílias adversárias do Médio São Francisco, e dos grupos de jagunços que percorriam a região nos primeiros anos do século 20, sob o comando de chefes políticos que retrataria com os nomes literários de Medeiro Vaz, Joca Ramiro, Zé Bebelo. Médico de roça, em Itaguara, no Vale do Paraopeba, outro afluente do São Francisco, Guimarães pôde penetrar na genuína alma mineira, que ele mostrará nos contos de Sagarana (principalmente em “O Duelo”). A visão quase humana dos animais, como em “O Burrinho Pedrês” e “Conversa de Bois” faz parte da transcendentalidade mineira do Alto São Francisco. A linguagem surpreeendente de “Corpo de Baile” e “Grande Sertão” não é o traço mais profundo da literatura de Rosa. Ainda que ele não tivesse a sua extraordinária cultura literária, sua obra teria sido da mesma forma monumental. Mais do que tudo, Guimarães foi um interessado no homem, que, nos sertões, é obrigado a ter um caráter mais nítido, a viver e a morrer com fé, paixão e coragem.

É uma pena que a viúva de Guimarães tenha sobrevivido ao grande escritor em completo recolhimento. Faltou, em tudo o que se disse sobre o grande escritor, o melhor depoimento, que seria de Aracy, sua discreta companheira por quase trinta anos.