domingo, 24 de fevereiro de 2013

AS USINAS DE FERNANDO LYRA


(JB) - Um leitor, em comentário sobre a morte de Fernando Lyra, identificou-o como “usineiro”. Nada o teria feito rir melhor. Há Lyras e Lyras no nordeste. Fernando procedia de família de pequenos agricultores de Lagoa do Gato, um dos lugares mais pobres do Agreste. Seu pai, ao deixar a região, fez-se modesto empresário. Com o tempo seus negócios cresceram e permitiram a Fernando formar-se em direito em Caruaru. Essa origem de classe, associada a outras virtudes suas, fizeram-me admirador e amigo de Lyra nos últimos trinta anos – títulos que compartilho com centenas de outras pessoas.

A notícia de sua morte chegou-me em hora pessoal já amarga: acabara de sepultar a mãe de Wania, minha mulher, em Belo Horizonte, o que me tocara fundamente, por ter sido, contra o lugar comum, uma amiga muito querida há 54 anos.

Em seguida à notícia,  comentamos, o médico Aloizio Costa e Silva e eu, a esfuziante personalidade  de Fernando Lyra, como a ele se referiu, em minha presença, o professor Affonso Arinos de Mello Franco. Todos admiravam a capacidade política do parlamentar pernambucano, fosse como analista dos movimentos históricos, que o faziam antecipar os fatos, fosse como o articulador que conseguia submeter as circunstâncias aos seus projetos – todos eles em favor da nação e de nosso povo. Essas eram as usinas que Lyra sabia administrar.

É bom repetir que os pernambucanos, os gaúchos e os mineiros – sem desmerecer o patriotismo dos outros brasileiros – tiveram o privilégio histórico de comprometer-se mais com a construção da nacionalidade. Em Guararapes nasceu a própria idéia de Nação, e nação mestiça, com a aliança de índios, negros e brancos, que expulsou os holandeses; coube ao Rio Grande riscar, com sangue, a fronteira meridional, em 300 anos de refregas com os castelhanos; em Minas, ferida em suas entranhas para a extração do ouro e gemas, nasceu a consciência do Estado para garantir a soberania nacional. Não é por acaso que essas três grandes províncias tenham sido aliadas nos momentos mais fortes de nossa história ainda curta.

Fernando via essa aliança necessária, com seu instinto de animal político, sem as construções demoradas do pensamento acadêmico. Ele quase a sentia na pele. Talvez tenha sido essa consciência poderosa que o levou a Belo Horizonte, no momento mesmo da posse de Tancredo, como governador de Minas, a fim de instá-lo a disputar a presidência da República. Fernando, no livro que escreveu sobre esses fatos, e que tive a alegria de prefaciar, disse acreditar que Tancredo não queria a chefia do Estado.

Nisso, ele se equivocava: Tancredo chegara ao Palácio da Liberdade convencido de seu dever de dar um fim à Ditadura e presidir à reconstrução do Estado Republicano, mediante a aglutinação do centro político. A leitura de seu discurso de posse, a partir da frase inicial – O primeiro compromisso de Minas é com a liberdade – não deixa dúvida. Tratava-se de claro manifesto de ação política.

Isso não diminui, em nada, os méritos de Lyra, que se empenhou, dia e noite, na luta pela vitória de Tancredo e na difícil missão que o mineiro lhe impusera, a de Ministro da Justiça da transição. Tancredo – que ocupara o mesmo cargo nas horas graves de 1954 – sabia que a esse Ministério, desde o Império, cabiam as tarefas mais duras da condução da política interna e da articulação com o Parlamento, hoje deslocadas para o gabinete presidencial. Lyra assim entendeu a missão e a cumpriu, com autoridade, diligência e sem jactância.

Ele soube assessorar-se de  acadêmicos de sua confiança, como os professores José Paulo Cavalcanti Filho, Christóvam Buarque, Joaquim Falcão, Marcelo Cerqueira e Sigmaringa Seixas, dando ao Ministério talvez o mais importante suporte intelectual de sua história. Foi essa equipe que, sob a chefia do Ministro, cumpriu a corajosa decisão de Sarney, a de se desfazer da legislação autoritária do regime militar.

Recordo-me, pessoalmente, de um fato significativo. No minuto seguinte ao da posse no Ministério, Fernando mandou que os guardas armados das entradas do edifício se recolhessem às suas repartições. O Ministério se abria ao povo.

Ao cuidar da organização e administração da Comissão Arinos, como um de seus membros, ajudei Fernando nessa tarefa de que Tancredo, pessoalmente, nos encarregara. Foi assim que, a pedido do presidente eleito, convidamos o professor Arinos a chefiar o grupo. Foi quando o grande jurista se referiu “à esfuziante juventude” de Lyra, ao mesmo tempo em que manifestou o seu respeito à sabedoria de Tancredo em nomeá-lo para a pasta da Justiça.

Como amigo, sofro a perda de Fernando com quem conversava quase todas as semanas, e sempre sobre o Brasil. Como cidadão, lamento a sua falta nesses próximos e atribulados meses do processo sucessório que já se abriu. Ele saberia construir a aliança necessária entre as lideranças regionais, em favor da democracia brasileira.

Este texto foi publicado também nos seguintes sites:

http://luishipolito.dihitt.com.br/n/politica/2013/02/15/conversa-afiada-santayana-e-as-usinas-de-lyra  

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

RUBEM BRAGA E O PODER


Em 1990, Rubem Braga descobriu que estava com câncer. O presidente Collor confiscara todos os haveres bancários, incluídos os das cadernetas de poupança. Carlos Castello Branco – que não era amigo do cronista e havia feito uma cirurgia nos Estados Unidos, para livrar-se de mal semelhante – escreveu-lhe uma carta. Nela, com grande otimismo, aconselhava o autor de O Conde e o Passarinhoa tratar-se no mesmo hospital em que se tratara, creio que em Houston.
Rubem disse aos amigos comuns que iria a Houston, com prazer, desde que o governo liberasse as suas aplicações. Sua amiga Vera Brant acionou as excelentes relações em Brasília, para que o dinheiro de Rubem – não tão grande assim – lhe fosse entregue para a viagem e o tratamento, comunicou ao cronista as suas diligências e a confiança em que tudo seria resolvido logo.
O Ministério da Economia informou que se todos que estivessem com câncer pedissem a liberação de seus haveres, o Plano Collor Fracassaria
Rubem, segundo alguns amigos, começou a pensar na viagem, enquanto o tempo passava. Uma semana, duas semanas, um mês – e nada. As pessoas do governo, contatadas por Vera Brant, davam vagas informações do pleito, até que a brava mineira reclamou uma resposta clara: o Ministério da Fazenda – ou da Economia, não me lembro ao certo – informou que se todos os que estivessem com câncer pedissem a liberação de seus haveres, o Plano Collor fracassaria.
Vera então imaginou um ardil. Disse a Rubem que o dinheiro já estava liberado, mas dependia de meras providências burocráticas. Assim, ela e outros amigos iriam adiantar-lhe a importância necessária para a viagem, e ele, quando recebesse seu dinheiro, poderia devolvê-la.
Rubem agradeceu muito, mas como homem honrado e orgulhoso, não aceitava. Percebera a manobra amiga da escritora, agradeceu, recusou com elegância e polidez. Não era um necessitado, só queria que lhe devolvessem as economias que fizera, e com as quais cuidaria da própria saúde. Entendia a solidariedade de Vera e seus amigos, mas era um homem soberbo.
Quando percebeu que não havia outro jeito, tratou de se preparar para o pior. Com o dinheiro que reunira, de seus salários na televisão, Rubem foi a São Paulo, onde funcionava o único crematório no Brasil, indagou pelo preço, preencheu o cheque. E quando lhe perguntaram onde se encontrava o corpo, apontou o próprio peito, e disse que seriam informados na hora certa, mas descontassem o cheque logo. Voltou para o Rio, reuniu os amigos em seu apartamento, dois dias antes da morte, e falaram de tudo, dos ausentes, das mulheres amadas, daquele verão, com seu sol e suas chuvas.
Conheci Rubem em 1956, em Belo Horizonte, quando ele esteve na redação do Diário de Minas, para ver o jornalista Hermenegildo Chaves, de quem havia sido companheiro noDiário da Tarde no início dos anos 30. Rubem tinha então 43 anos e estava no auge de sua carreira.   Sempre que eu ia ao Rio, eu o visitava e, enquanto trabalhava com Chaves – que tinha o apelido de Monzeca – era portador de cachaça e requeijão de Montes Claros que ele enviava ao amigo.
Ao longo dos anos, sempre que nos encontrávamos, ele era muito amável e conversávamos invariavelmente sobre Minas e os mineiros.
Lembro-me de sua irritação quando descobriu que um sósia visitava escolas do Rio e se apresentava com seu  nome, sendo homenageado pelas professoras e pelos pequenos alunos.  Vociferava contra o canalha, por enganar as crianças e as professoras ingênuas.  Chegou mesmo a escrever uma crônica, denunciando que havia no Rio um sujeito que tinha o péssimo hábito de se passar por Rubem Braga.
Não houve, em meu modesto juízo, quem melhor escrevesse em nossa língua portuguesa, nos dois lados do oceano. Seu texto fluía como as águas limpas de um riacho na montanha, contornando suavemente as rochas: sua profundidade se revelava, sem pudores e sem disfarces, na superfície. Era, embora muitos assim não o vissem, severo crítico da sociedade, já em seu tempo hipócrita e egoísta - embora muito menos do que hoje.
Certo marido, alertado por delator anônimo, surpreendeu a mulher em companhia do amante – e matou os dois. No dia seguinte, a sua crônica se endereçou ao canalha responsável pela tragédia, chamando-lhe hiena, e o cumprimentando pelo provável prazer diante dos mortos, dos filhos órfãos, das famílias atingidas.
Poucos conseguiram mostrar a patologia do regime militar com a precisão de Rubem
Poucos conseguiram mostrar a patologia  do regime militar com a precisão de Rubem, ao compará-lo, em crônica, a “uma porca mal capada”. Os que conhecem o  meio rural sabem que raramente a porca castrada com imperícia consegue sobreviver: sobre a ferida as moscas pousam suas larvas, a infecção se torna invencível e o animal agoniza lentamente – a menos que alguém o sacrifique.    
Vai, aqui, modesta sugestão aos responsáveis pelo ensino de nossa língua: adotem os textos do velho Braga no ensino fundamental. Não há, neles, nada de politicamente incorreto, posto que são, e declaradamente, subversivos contra a ordem do ódio, as regras do ressentimento, o domínio do dinheiro.
Aconselho, como obrigatório, talvez o mais sério de seus textos, em que, aparentemente sem assunto, narra tenaz acompanhamento do cronista a fugaz borboleta amarela nas ruas centrais do Rio: alegre concessão da vida a si mesma, cumplicidade do homem e do inseto, partilhando a alegria de estarem vivos, sem destinos, sob o sol e o azul.
Rubem foi um dos maiores nomes da literatura brasileira. Há quem o compare a Machado de Assis. Ao autor de Dom Casmurro - salvo em dois ou três contos, nos quais a ironia ainda era mais forte do que a compaixão – faltava solidariedade para com o sofrimento e não havia a alegria com a felicidade dos outros.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

OSCAR, NO MUNDO E NO SÉCULO



(JB) - Duas idéias se associam, espontâneas, quando pensamos em Oscar Niemeyer: a da alegria e a da infância. Nem todas as crianças são felizes e, por isso mesmo, o adulto, quando pode, recupera o tempo de menino, mesmo que se veja obrigado a recriá-lo, livrando-o das tristezas e revivendo as horas felizes, ainda que escassas. Oscar foi, acima de tudo, um artista, que sabia desenhar. Ao ver o que veio de sua obra, poderíamos repetir – e com mais razão – o verso de Vicente Aleixandre, sobre Pablo Picasso: o mundo era uma linha na mão do menino.
       A linha, na mão de Oscar, não foi habitar apenas a tela ou a cartolina: saiu de seus dedos para, na doma da arquitetura, levantar igrejas e palácios, universidades e capelas. Muito do mundo saiu de sua mão de gênio.
               Oscar sempre foi o menino que amava contestar o mundo feito pelas normas, ou seja, pelos esquadros. Por isso mesmo, amolgou o ângulo reto, para voltar à verdade da curva. A inspiração, revelada, do corpo feminino para a sua ousadia em concreto, parece ter sido uma travessura de adolescente, e talvez tenha sido como ele costumava dizer.
             Alguns de seus melhores amigos foram também moleques, naquele sentido lúdico do vocábulo. E entre todos os que já se foram, o mais próximo na visão menina da vida, foi Darcy Ribeiro. Foram moleques os dois, pela vida a fora, e muitos daquela geração brilhante – e honrada pelo patriotismo e pela solidariedade.
            E já que lembramos o espanhol Aleixandre, podemos recordar, também, a norte-americana Gertrud Stein, que considerava a alegria a coisa mais séria da vida. Porque eram meninos e porque eram alegres, Darcy e Oscar, Vinícius e Tom Jobim, entre outros de nossos anos dourados, foram homens sérios.
       Tememos a morte, porque a desconhecemos. Oscar ludibriou a morte, até a bela idade a que chegou, por amar intensamente a vida. Ele parecia com ela negociar, sempre aceitando um novo trabalho, na certeza de que lhe seria concedido o tempo de cumprir seu compromisso, de concluir o seu projeto. Em seus últimos dias, revivendo a juventude leve e livre, pediu a Vera, sua mulher, que conseguisse alguns pastéis. Isso me fez lembrar o que ele me disse certa vez:  não conhecia iguaria melhor do que pastéis fritos, quentinhos, engordurados e quase torrados, e ainda mais saborosos se combinados com chope gelado. 
Oscar e Darcy foram companheiros na trilha da utopia, esse caminho sem fim, mas no qual o destino que conta se alcança em cada passo. Um dia Oscar foi visitar Darcy Ribeiro em seu gabinete no Senado. Como o seu companheiro de travessuras não estava, fez, na parede branca, um belíssimo desenho. Era o recado que ali deixava para o amigo. O senador Francisco Dornelles, ao ocupar o mesmo gabinete, fez questão de manter  o  afresco em sua parede.
        Oscar, em seus 105 anos, morreu menino.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

O BRASILEIRO JORGE AMADO

(HD) - O menino, filho do  rico fazendeiro da região do cacau, que foge do colégio, torna-se repórter de polícia aos 14 anos, aprende a viver nos bordéis e nos botequins do porto da Cidade da Bahia, foi um escritor de seu povo. Ser escritor de um povo não é só contar suas estórias, belas ou tristes. É mais do que criar estilos literários, realizar experiências lingüísticas, apelar para metáforas inusitadas. Ser um grande escritor de seu povo, como foi Michael Gold, com Judeus sem Dinheiro; John dos Passos, com Manhattan Transfer; Steinbeck, com Vinhas da Ira; Ferreira de Castro, com A lã e a neve; Érico Veríssimo, com O Tempo e o Vento, e Tolstoi, com Guerra e Paz – entre tantos outros -  é incorporar na alma todos os sentimentos, bons e maus, de seus conterrâneos, no momento da recriação literária. É vivê-los nas próprias vísceras, participar de seus sofrimentos, acreditar em seus deuses e acompanha-los no momento da morte.
        Jorge Amado foi o escritor da Bahia, da Bahia que dera nascimento ao Brasil e à sua literatura com o gênio cáustico de Gregório de Mattos Guerra; da Bahia que consolidou a independência, com a gesta heróica de 2 de Julho; da Bahia do irredentismo da Revolução dos Alfaiates. E, por isso mesmo, um brasileiro.
         É velha a discussão entre a literatura e a política. Toda literatura - como os poemas e peças teatrais gregas - trata das relações entre os seres humanos, todas elas condicionadas pelas tensões do poder. A obra literária é sempre política. É assim que podem ser lidos os textos de Guimarães Rosa, inspirados, como se sabe, pelos relatórios da Polícia Militar de Minas, antiga Força Pública. Ao escrever seu excelente ensaio sobre o Rio São Francisco, Marco Antonio Coelho trata do assunto, ao identificar um dos personagens fortes de Grande Sertão:Veredas,  o enigmático Zé Bebelo, vencido, na ficção, pela ousadia de Riobaldo. Guimarães se baseou na vida real do “coronel” Rotílio Manduca, chefe político e responsável, conforme a lenda, pela morte de mais de duzentos inimigos, no Vale do São Francisco.
         Jorge Amado foi um grande militante político. Ao eleger-se deputado federal pelo Partido Comunista apresentou projetos de lei como o da efetiva liberdade religiosa – ele que era rigorosamente ateu, ainda que acolhido nos terreiros de candomblé. Dele tenho a memória de um forte convívio, no Brasil e no Exterior. Fomos membros da Comissão de Estudos Constitucionais, que elaborou o anteprojeto da Constituição de 1988 e ali sempre coincidimos em nossas posições.
          Ele se orgulhava de que o definissem como “o romancista das prostitutas e dos vagabundos”. Ele sempre foi o romancista do povo pobre, explorado e oprimido de nosso país.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

GABRIEL GARCIA MARQUES. O TRISTE OUTONO DE UM GÊNIO


Entre outras dívidas que tenho para com a memória de Jorge Amado está a de ele me ter apresentado, em 1972, em Bad Godesberg, a Gabriel Garcia Márquez. Era um encontro de escritores latino-americanos, patrocinado pelo governo alemão, que eu cobria para este JB, e pude conhecer, também ali, o genial gualtemateco Miguel Angel Astúrias. Dissera a Jorge de minha admiração por Cién años de soledad, ao manifestar a minha timidez diante do gênio. Jorge sorriu e me confidenciou: “o escritor escreve para ser admirado. Vamos conversar com ele”. Assim, conversamos algum tempo com Garcia Marques. Ele já se encontrava no planalto de sua glória. Era ainda muito jovem, e exibia, aos 44 anos, o bigode um pouco grisalho.

Gabriel foi extremamente amável e me disse que éramos colegas. Colegas no jornalismo, o que o autorizava a ver-me também como escritor. O bom jornalismo é sempre boa literatura, disse. E quem não sabe escrever, não faz literatura, nem jornalismo. Só pode ser considerado jornalista ou escritor aquele que vive do que escreve.

Ele me surpreendeu pelo bom humor. Antes Astúrias me impressionara pela sobriedade. Enfim, entre um e outro, havia quase trinta anos de diferença.

Não o vi em Praga, quando ali encontrei, em dezembro de 1968, Carlos Fuentes e Julio Cortazar. Ele, naquela noite - que foi a do AI-5 no Brasil - era convidado especial de Milan Kundera. Eles, juntamente com Jean Paul Sartre, haviam sido convidados pelos intelectuais tchecos, para assistir à premiére de Les Mouches, a peça do escritor francês.

Leio, agora, em El País, que seu irmão mais moço, Jaime Garcia Márquez, que vive em Cartagena de Índias, conversa com o escritor, pelo telefone, quase todos os dias. A pedido de Gabriel, fala do passado que o irmão está perdendo. O escritor transita em seu labirinto, e o tênue fio de Ariadne é a voz do irmão. Não teremos mais notícias novas do mundo fabuloso que ele criou, tendo como centro a instigante Macondo.

Gabriel está com demência senil, um dos sinônimos da Doença de Alzheimer. Com a memória, ele perdeu também as letras. Não escreverá mais - de acordo com a dolorosa conclusão do irmão. Mas ainda o teremos com vida: é o consolo que nos dá Jaime Garcia Márquez. Enquanto procurar o passado, Gabriel, de um mundo que se esvazia, estará voltando ao mundo que criou.

Em Roma, em 1987, José Saramago, outro que deixou o jornalismo pela literatura, me disse que gostaria de morrer quando estivesse buscando a frase ideal para colocar na boca de um personagem estúpido: “quando não conseguir mais isso, estará na hora de morrer”. Mas Saramago era homem de uma Europa sempre angustiada. Gabriel é homem de nossa América, e, por isso, insiste em recuperar a vida que se esmaece, porque na vida, em nossa geografia humana, sempre habita a alegria da esperança.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

MEMÓRIA DE JANGO

Não tive ainda a oportunidade de ler o livro do professor Jorge Ferreira sobre o Presidente João Goulart, mas a simples evocação do grande brasileiro me conduz a algumas lembranças pessoais de um homem solidário com seu povo e que conquistava todos os que o conheciam.

Em 1953, logo depois de nomeado Ministro do Trabalho, Jango visitou Belo Horizonte. Fui encarregado pelo Diário de Minas, onde trabalhava, de acompanhá-lo, em seus contatos oficiais e com os líderes sindicais mineiros. Jango vestia um terno branco, de linho irlandês

S120 (para os que ainda se lembram daquele tempo). Em determinado momento alguém lhe fez um pedido, ele não encontrou caneta nem papel em seus bolsos e apelou para o jovem repórter que se encontrava ao lado. Ofereci o que tinha, uma folha de papel e uma caneta Sheaffers, de tinta azul. Por uma dessas imprevisíveis fatalidades, a caneta começou a soltar a tinta, sujando as mãos do Ministro. Jango, em ato contínuo, limpou suas mãos no próprio paletó, até então imaculadamente limpo. Fiquei constrangido, e ele me disse que não me incomodasse - continuaria usando a caneta – e retirou do bolso um lenço, passando a usá-lo para limpar os dedos, a cada vez que escrevia.

Em 1975, estive em Buenos Aires para redigir um livro sobre a Argentina. Visitei o escritório comercial de Jango, instalado no centro da cidade. Conversamos sobre os dois países e a situação política. O presidente se lembrou do nosso exílio em Montevidéu - quando nos vimos algumas poucas vezes – de Belo Horizonte e de minha caneta esbodegada.

Tu me deves um terno de linho irlandês, lembrou para o meu desconforto, e sorriu. Como eu estivesse em companhia de Wania, minha mulher, cujo sofrimento nos meses que se seguiram ao golpe ele conhecia, bateu-me afetuosamente no ombro, enquanto a olhava, e disse: - Se os militares te fazem a vida impossível, vem com tua família. Na estância haverá um lugar para todos, e não faltará uma ovelha para carnear.

Foi a última vez que o vi. Fiquei preocupado porque ele mantinha sempre à mão comprimidos de trinitrina: sofria de cardiopatia, e o remédio, poderoso, serviria para, em caso de urgência, dilatar os vasos até o socorro médico. No ano seguinte, em dezembro de 1976, quatro meses depois de Juscelino, Jango morreria no exílio. Cinco meses mais tarde, em maio de 1977, seria a vez de Lacerda. Tancredo duvidava daquela coincidência: em menos de um ano, os três morreriam, a seu ver, de forma estranha. Segundo informações posteriores, um agente, a serviço da Operação Condor, teria trocado o vasodilatador por outra droga, o que teria matado JANGO em sua estância argentina.

Jango não escolhera seu destino. Filho de rico estancieiro, ao aproximar-se de Vargas, comoveu-se com a vida austera e discreta do ex-presidente, confinado em sua fazenda do sul. Não era um intelectual, como Lacerda, nem um visionário, como foi Juscelino, com os quais tentou a famosa Frente Ampla contra a ditadura. Aprendera, com Getúlio, a respeitar os trabalhadores e dava real importância às organizações sindicais, como contraponto às sólidas e poderosas instituições patronais.

Em 1954, ao cobrir os fatos que se seguiram à morte de Vargas, vi quando Jango – que morava em um hotel de Copacabana – chegou ao Catete, tirou do bolso um documento e leu em silêncio, o rosto tenso. Provavelmente se tratava de cópia da carta-testamento que Getúlio lhe entregara antes de terminar a reunião ministerial, da noite anterior, com a observação de que se tratava de um assunto a ser resolvido no dia seguinte – como se soube depois. Essa foto ilustrou, se não me falha a memória, a matéria que redigi sobre os fatos, e foi publicada na edição de 26 de agosto do Diário de Minas.

Ele estava desolado, como o filho que perde o pai, o viajante que perde o caminho. Mas, no dia seguinte, logo depois do sepultamento de Getúlio, em São Borja, reuniu-se a Oswaldo Aranha e a Tancredo Neves. Os três avaliaram a situação e concluíram que era necessário colocar nas ruas uma candidatura presidencial, a fim de coibir o golpe antinacional que estava em marcha, sob o governo frouxo e cooptado de Café Filho. Ali se decidiu que a candidatura de Juscelino – um dos favoritos de Vargas – fosse lançada em seguida.

Jango tinha uma visão de Estado que continua válida até hoje. Se ele houvesse conseguido realizar as reformas de base – principalmente a agrária e a bancária – o Brasil teria chegado a seu futuro mais cedo. Os trabalhadores do campo escapariam das brutais condições impostas pelo latifúndio, aumentaria a produção de alimentos e, como ocorreu em outros países, seria ampliado o mercado interno para a indústria nacional. A reforma bancária colocaria ordem no sistema financeiro­ – providência a cada dia mais necessária, aqui e em todas as partes. O golpe de 1964 atrasou o processo de construção nacional, que só foi retomado com Itamar, para em seguida frustrar-se durante oito anos, e ser retomado por Lula, com sua política social que libertou milhões de brasileiros da miséria.

Jango, estancieiro rico, que chegara à política pela solidariedade pessoal para com Vargas, tornou-se, pelos seus atos, corajosos e patrióticos, um homem de seu povo.

sábado, 2 de julho de 2011

O HOMEM DIANTE DA MORTE


Conheci bem José Alencar, e conheci bem Teotônio Vilela. Minhas relações com o alagoano eram marcadas pelo patriotismo radical que ele passou a exercer na luta contra a ditadura, já diagnosticado o câncer que o levaria. Com Alencar, a nossa cumplicidade era a província de Minas. Foi em nome de Minas que pude contribuir para sua eleição ao Senado. Em 1998, asfixiadas as montanhas pela arbitrariedade manhosa do governo federal de então, a vitória de Itamar era vital para a recuperação da autonomia do Estado. Sabíamos, desde o início, que a eleição iria para o segundo turno. Como as eleições para o Senado se resolveriam no primeiro, José Aparecido de Oliveira e eu, sem discutir o assunto com os candidatos, concluímos ser absolutamente necessária a vitória de Alencar. Se perdêssemos a cadeira do Senado para os adversários, a posição do governador Eduardo Azeredo, que disputava a reeleição, estaria fortalecida - e comprometida a restauração política de Minas. Foi assim que Aparecido e eu nos escalamos, para trabalhar pela vitória de Alencar. Dediquei-me a ajudá-lo, na organização de seu discurso de campanha.
Teotônio sabia da gravidade da própria enfermidade e tinha a consciência da morte. Eu trabalhava na Folha de S. Paulo, e Octavio Frias Filho sugeriu-me que o entrevistasse, em 1982. Foi a entrevista mais demorada que fiz em minha vida. Teotônio falou-me, pela primeira vez, na casa de uma de suas filhas, em São Paulo. Quando, no dia seguinte, preparava para redigir o texto, recebi seu telefonema. Queria acrescentar alguma coisa esquecida. E assim ocorreu por quase duas semanas. Ele sempre interrompia o meu trabalho, lembrando-se de uma idéia, de um detalhe. E fazia questão de ir à minha casa, tornando-se, naqueles dias, íntimo da família. As nossas conversas ocupariam um livro de razoável tamanho. Tive, no texto final, que cortar trechos também importantes, para me cingir a duas páginas do jornal. Daí em diante, sempre que ele ia a São Paulo, nós nos encontrávamos, no Hotel Otton Pálace, onde se hospedava, ou em minha casa.
Nos dois homens públicos encontrei o mesmo confronto com a idéia da morte. Teotônio não a temia, embora amasse profundamente a vida. Ele fez da pressa (sabia que o tempo se encurtava) seu ânimo, e saiu pelo Brasil, clamando pela pátria que existia, mas era desdenhada pelas elites, às quais, pelo nascimento, pela carreira e pela fortuna, ele pertencia. Em nossa última conversa, pelo telefone, ele me disse: “o óleo da candeia já está acabando, só resta o molhado da mecha. Estamos indo, Mauro”. Em Teotônio, a busca do poder era responsabilidade legada pelos ancestrais. Vinha com a escritura da fazenda e as máquinas da usina, além, é claro, dos restos dos engenhos mais antigos. De uma família que, consciente de seu papel, endereçara Teotônio à política, e seu irmão, Dom Avelar, que foi Cardeal Primaz do Brasil, ao sacerdócio. José Alencar, nascido na Zona da Mata de Minas, enfrentou o trabalho muito cedo. Autodidata, chegou à vida pública depois de vitoriosa carreira empresarial. Faltava-lhe a realização política e a ela se dedicou já homem maduro. Aproveitou, com inteligência, a ajuda das circunstâncias, ao aceitar o convite de Lula, e dar ao eleitorado da classe média (mais do que aos eleitores das elites, conhecedores das coisas como elas são) o aval para a vitória do operário.
Mas, em ambos, na obstinação pelo aproveitamento das horas que se esvaíam, houve a mesma postura diante da morte: a de recebê-la, como dizia Manuel Bandeira, em seu poema conhecido, “lavrado o campo, a casa limpa, a mesa posta, cada coisa em seu lugar”.